Lula frequenta o processo sobre o sítio de Atibaia como um imperador às avessas. Isso acontece porque o réu permite que seus advogados o apresentem como uma espécie de Napoleão se descoroando. Executada com método, a descoroação é tão bem sucedida que o soberano petista tornou-se um exemplo raro de inocente indefeso.
O caso do sítio é muito parecido com o do tríplex, que rendeu a Lula uma condenação de 12 anos e um mês de cadeia. Com uma diferença: o apartamento do Guarujá Lula desistiu de comprar depois que virou escândalo. A propriedade de Atibaia virou escândalo porque Lula utilizou mesmo sem comprar.
Sobram nos autos evidências de que Lula usufruía do sítio como dono. Na condição de ex-presidente, faz jus a assessores remunerados pela União. Entre 2012 e 2016, esses servidores receberam 1.096 diárias para viajar a Atibaia. Funcionários do sítio trocaram e-mails com o Instituto Lula. Batida da PF encontrou espalhados pela casa roupas e objetos pessoais de Lula e de sua mulher Marisa.
Lula é proprietário oculto do imóvel, acusa a Lava Jato. Os verdadeiros donos são dois sócios do filho do imperador, o Lulinha, rebate a defesa. Coisas estranhas passaram a acontecer desde que Lula se apropriou do sítio.
Membros do consórcio Odebrecht-OAS-Bumlai —duas notórias empreiteiras e um pecuarista-companheiro— aplicaram mais de R$ 1 milhão em verbas de má origem numa reforma do sítio. É dinheiro roubado da Petrobras, sustenta a força-tarefa de Curitiba. Não, não. Absolutamente, nega a defesa.
Como de hábito, alega-se que Lula nem sabia que o sítio seria reformado. Nessa versão, contratos comprovariam que as despesas correram por conta dos “donos” do imóvel. Um deles, Fernando Bittar, prestou inusitado depoimento à juíza Grabriela Hardt, substituta de Sergio Moro. Nele, disse que não gastou um mísero tostão.
No processo do tríplex, Lula disse que jamais passou uma noite no imóvel. Admitiu ter visitado o apartamento porque Marisa cogitara comprá-lo. Mas desistiu. Como se sabe, essa lorota deu cadeia. No caso do sítio, recorre-se ao mesmo erro para ver se dá certo. Amigos como Paulo Okamotto e Gilberto Carvalho disseram à Justiça que Lula pensou em adquirir o sítio. Mas não levou a ideia adiante.
A engenhosidade dos advogados transformou Lula num sujeito que mantém ligação sobrenatural com os imóveis. Basta que ele pense em comprar uma propriedade para que a OAS, a Odebrecht ou as duas providenciem os confortos. Assim mesmo, do nada, sem que ninguém solicite.
No tríplex, surgiram um elevador, uma cozinha de luxo, uma sauna, um piso novo… No sítio, outra cozinha, a reforma da sede, a construção de anexos, melhorias no lago, pedalinhos… De repente, quando a coisa vira escândalo, Lula foge pela porta de incêndio: ”Não é meu, não tenho nada a ver com isso.”
Esse tipo de enredo divide os brasileiros em duas categorias: há os cínicos, que conseguem usufruir graciosamente de um sítio paradisíaco, do tamanho de 24 campos de futebol. Há também os azarados como você, caro leitor, que não dispõe de amigos tão generosos. A um desconhecido chamado Fernando Bittar, os mandarins da Odebrecht e da OAS não dariam nem bom dia. A um imperador popular, entregariam a própria alma.
O que estragou o universo de gente como Lula foi uma ferramenta jurídica aperfeiçoada por uma lei que a companheira Dilma Rosseff sancionou quando ainda estava no Planalto. Chama-se colaboração judicial. Permite que amigos se convertam em delatores. E faz com que gente poderosa fique impotente.
Foi assim que amigos como Emílio Odebrecht e Léo Pinheiro jogaram água no chope de Lula. Odebrecht ainda teve a delicadeza de atribuir a encomenda das obras do sítio a “dona Marisa”, que já morreu. Mas Pinheiro, língua em riste, disse ter ouvido a solicitação dos lábios do próprio Lula.
Com o laborioso auxílio dos seus advogados, Lula dedica-se no processo sobre o sítio de Atibaia a desconstruir a imagem que erguera durante uma vida. É como se o imperador petista, no papel de anti-Napoleão, planejasse sua própria Waterloo. Sob atmosfera burlesca, um Lula descoroado vai à presença da juíza Gabriela Hardt, nesta quarta-feira, no papel de duque de Wellington de si mesmo. JOSIAS DE SOUZA
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